No hospital, o tempo para visitas acabou. Eu não sei se ela sente que passei as últimas duas horas ao seu lado. A quanto tempo estamos assim? Tão perto e tão longe? Ando o mais rápido que posso até a saída. Os corredores frios e brancos, e o cheiro de iodo e desinfetante de eucalipto me enjoam. Já é noite e atravesso a rua para chegar ao ponto de ônibus. Não moro longe, menos de dez minutos depois estou em casa.
As luzes do sobrado estão acesas, porque as deixei assim quando saí pela manhã. Entro em casa sabendo que apenas Roxy, o meu gato preto me espera. Suspiro, resignada.
— Roxy! — chamo e balanço a sacola para ele ouvir o som das latinhas batendo. Ele me olha preguiçoso, sobre o encosto do sofá. — Hey bebê, olha o que a mamãe trouxe!
Antes mesmo que eu termine de abrir a lata, Roxy já está roçando em minhas pernas, ronronando. Despejo a ração molhada no pratinho dele e o vejo comer aquele troço com vontade.
De todas as coisas que odeio, ficar só é a pior de todas. Por que ficar só significa que não vou poder fugir dos meus pensamentos. E a solidão me faz pensar Nela. Basta um minuto de silêncio e eu sei que a imagem Dela vai surgir lá do fundo das coisas que não devem ser lembradas. Não sem desconforto. Vaca.
Subo as escadas. O plano para a noite é o mesmo de todas as outras: tomar banho e estudar. Pensei em cancelar o serviço de séries só para não me distrair. Mas é claro que eu não fiz isso. Em contrapartida, deletei minhas contas nas redes sociais. Não sei bem quando comecei a ficar assim, tão chateada com a vida. “Bem, motivos não faltam”. Penso comigo mesma e um sorriso sarcástico toma conta do meu rosto.
Parece que, de certa forma, eu pausei a parte de mim que deveria viver. Estava me conformando com a ideia de “ir levando”. Tomo o meu banho no automático, não demoro muito. Antes mesmo que eu saia do banheiro, sinto o cheiro dela. Não é um perfume. É um cheiro que é só dela e de mais ninguém. Abro a porta, apressada. E a encontro sentada na beirada da minha cama. Erébia estava de volta.
***
Endireito as costas e a encaro. O coração está descompassado. Ainda tenho dúvidas se a mulher sentada na minha frente é ela mesma ou minha imaginação. Queria correr para os seus braços e dizer o quanto senti sua falta. Eu não queria que ela fosse embora nunca mais. Mas ao invés disso eu pigarreio para ter certeza que a voz não vai falhar e pergunto com a maior frieza que consigo imprimir:
— O que você quer?
Ela sorri, aquele sorriso lindo que se espalha pelo quarto inteiro.
— Como você está? — Erébia olha para mim e sinto o corpo arrepiar por baixo da toalha. —Soube o que houve com a sua mãe.
— E por isso você veio? Um pouco tarde, não acha? — Precisava me manter distante o suficiente.
Erébia levantou e caminhou até mim. Os passos felinos me encurralando. Os olhos cor da noite me encarando. Parou bem próxima, o suficiente para eu ter certeza que o seu cheiro era real. Para que eu sentisse o seu calor. Com delicadeza, encaixou uma mecha do meu cabelo molhado atrás da minha orelha. Recuei um passo e ela veio junto.
— Me perdoe, Liz. Eu não pude vir antes. — Ela falava baixinho.
— Não me chame de Liz! — explodi e me livrei do abraço que ela estava prestes a me dar — você sabe que eu odeio! Meu nome é Lizandra! LI – ZAN-DRA! O que te impedia de vir me ver, Erébia? O quê? Você sabe que odeio quando você faz isso! Odeio quando me deixa só! Toda vez que preciso de alguém de verdade ao meu lado você some, sua vadia desgraçada!
Eu gritava minha dor. Percebi que estava difícil respirar porque eu soluçava, e lágrimas pesadas vazavam dos meus olhos. O meu corpo todo tremia e me faltavam forças. Encostei na parede do guarda-roupas e deslizei para o chão. Não conseguia parar.
Erébia sentou ao meu lado deitou minha cabeça em seu ombro. E nem sua presença conseguia aplacar aquele buraco no meu peito que eu vinha tentando ignorar. Eu já não controlava os meus pensamentos.
— Ela vai ficar bem, Erébia? Minha mãe vai acordar e levantar daquela cama?
— Mas é claro, coelhinha. E eu vou te ajudar. Shiii. Vai ficar tudo bem. Você não precisa mais chorar. Eu não vou mais sair do seu lado.
— Promete?
Ela não me prometeu nada. Mas me respondeu com um beijo longo e fomos para a cama. Porque entre nós as coisas eram assim. Erébia sumia e aparecia de novo. E toda vez que ela ia meu coração ia junto. E quando ela voltava, a vida parecia fazer sentido outra vez. E durante aquelas horas em que ela me fez esquecer de tudo, eu quis acreditar que as coisas dariam certo.
***
Acordei quando ainda era madrugada. A garganta seca. A luminária do criado mudo jogando luz amarela no quarto. Me assustei ao encontrar Erébia deitada na cama de frente para mim. Ela me olhava e me deixei levar pelos seus olhos. Estávamos nuas, nossas mãos entrelaçadas. Meus olhos ardiam um pouco, nem precisava me olhar no espelho para saber que estavam inchados. Eu devia estar ridícula. Institivamente, puxei o lençol.
— Você é linda, Liz. — Ela disse, acariciando meu rosto.
— Você não dormiu?
— Você sabe que não durmo. — e sorriu.
— Está acontecendo alguma coisa, não está? — agora que eu não estava mais surtando, podia ver as coisas com mais clareza.
— O meu tempo aqui está acabando.
— Quê? — Me sentei na cama para assimilar o que estava ouvindo.
— Os zeladores do tempo já estão me caçando. De novo.
— Por isso você sumiu?
— Eu pensei em ir com eles dessa vez.
— Mas por que? E eu?
— É por você que ainda não fui.
— Eu não quero que você vá. — e a minha voz saiu ridícula, infantil. Com Erébia, eu sempre seria uma garota mimada de dezesseis anos. — Depois de passar dois mil anos aqui na terra, como você pode simplesmente ir para outro lugar?
Erébia riu.
— Você continua sendo a criança que conheci, Liz.
— Eu sei que perto de você eu não sou nada. E talvez eu não signifique nada para você também... — as lágrimas começaram a surgir de novo.
— Tem um jeito de eu conseguir ficar. E é exatamente o jeito que eu não queria fazer.
— Que jeito?
— Para fugir dos zeladores, eu preciso me esconder em você.
— Como assim?
— Tenho que apagar os rastros do corpo em que eu estava.
— E por que você tem que se esconder em mim?
— Eu não tenho mais tempo para convencer ninguém a me esconder.
— Foi só por isso que você voltou, não é?
— Por que você é tão desconfiada? Não ouviu nada do que eu disse? Eu vim me despedir, sua fedelha!
— E como eu posso confiar em você, Erébia?
Ela ergueu os braços num gesto de paz. Levantou da cama e começou a procurar as roupas pelo quarto. Aquela vadia ia embora de novo... e dessa vez, talvez nunca mais voltasse.
— Você é uma entidade milenar. Eu já vi as coisas que pode fazer. Como não consegue se livrar de meia dúzia de zeladores?
Ela riu de novo. De mim.
— Liz, quantas vezes eu já te expliquei que as leis do universo são para todos? Por que você acha que as pessoas morrem? O tempo passa, Liz. Mesmo que todos os relógios do planeta deixassem de funcionar ou de existir, ou se não conhecêssemos o conceito. O tempo passa. E pode acreditar, ele acaba. Os zeladores são responsáveis para que nada nesse mundo dure mais que o necessário. E nós sabemos que eu estou aqui muito além do necessário. Devo ter quebrado todas as regras que os burocratas da Ordem criaram.
E quando ela terminou de falar, já estava vestida novamente. Os coturnos calçados.
— Para onde você está indo?
— Eles chegaram. E não faço a mínima ideia de para onde vão me levar.
Uma ventania forte levantou as cortinas da janela e a porta abriu com estrondo. Passos firmes subiam a escada. Eu sabia que ela não estava mentindo e quem quer que fosse que estivesse causando aquele tufão dentro da minha casa, estava mais do que disposto e levar Erébia embora e isso eu não ia permitir.
— Erébia?
— Liz.
— Ainda dá tempo de ficar comigo?
Ela sorriu e tocou minhas têmporas com as pontas dos dedos. Eu apaguei.
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